CANUDOS, O DESPERTAR DA DIGNIDADE

Canudos era uma cidade que se situava no interior baiano, em plena caatinga, e que chegou, já no fim do Século XIX, a ser a segunda maior cidade do estado em número de habitantes. Só perdia para Salvador.

À época da guerra de Canudos, uma longa estiagem atingiu o nordeste brasileiro e muitos desempregados foram atrás do líder messiânico Antônio Conselheiro, que por volta de 1893 optou por se estabelecer no local que denominou de Belo Monte, posteriormente chamado de Canudos.

Os latifundiários locais e a Igreja não suportaram a perda de vaqueiros e de fiéis para um líder Messiânico que prometia o Paraíso com montanhas regadas a leite e mel. Viam nele um perigoso líder revolucionário. Graças a essa pressão, a polícia baiana atuou contra o Conselheiro e seus seguidores. Posteriormente, o governo central foi compelido a intervir e, após quatro batalhas, pôs fim ao arraial de Canudos.

Canudos foi queimada por militares republicanos brasileiros em 1897, sob a presidência de um civil. Depois foi reconstruída. Por fim, restou inundada em 1968, em plena ditadura, para a inauguração do Açude de Cocorobó.

A Canudos verdadeira, a de Conselheiro, está quase toda submersa. Uma parte da antiga fazenda Canudos ainda sobrevive à beira do açude, sendo conhecida como Velha Canudos. Mas, mesmo exterminada, ela ainda consegue nos revelar muitas coisas a respeito do Brasil e do seu povo, de nossa política e costumes.

Cerca de 30 mil almas foram dizimadas naquele local. Após a guerra, houve a degola dos que se recusavam a dizer viva a República, muitas crianças sobreviventes foram adotadas ilegalmente, como se fossem troféus dos vencedores, e outras ainda foram prostituídas ou conduzidas ao trabalho infantil.

Foi graças à guerra de Canudos que começamos a conhecer as hoje chamadas Comunidades, termo utilizado não para dignificar, mas para camuflar a tristeza histórica das Favelas. Para quem não sabe, foi no morro da Favela onde os militares avistaram pela primeira vez Canudos, com suas casas construídas uma próxima à outra com traçados irregulares. Ao fim da guerra, muitos dos soldados, também pobres, voltaram aos morros no Rio e perceberam a semelhança do local com a Canudos da guerra, e passaram a denominar o conjunto de casas onde moravam de Favela, termo que ficou associado aos aglomerados de casebres muito pobres, construídos sem muito espaço e em traçados irregulares, nas encostas de morros. O termo se popularizou no Brasil e hoje é conhecido mundialmente.

Ainda pouco sabemos das adoções irregulares havidas, bem como da prostituição de muitas meninas e da exploração do trabalho infantil das nossas crianças órfãs de Canudos. A forma de tratamento das crianças de Canudos simboliza bem a marca de desconsideração pela infância que o País ainda traz consigo.

E quase nada se tem conhecimento das ações que os governos das províncias e central adotaram para evitar a leva de milhares de pessoas pelas estradas, os famosos retirantes, em busca de água e comida, situação que hoje se enquadraria na categoria de deslocados internos, ou seja, refugiados.

É bom recordar que em 1897 não se discutiam os direitos humanos no Brasil e a Constituição vigente era a Republicana de 1891, que previa tão somente direitos civis na forma de declaração de direitos nos seus artigos 72 a 78.

A brutal invasão militar de um local de moradia de 30 mil pessoas, o massacre havido nos combates, a degola em massa dos conselheiristas após a vitória das forças federais, a utilização das crianças órfãs de Canudos para a prostituição, a adoção ilegal, o trabalho infantil e a desconsideração pelas pessoas que eram obrigadas a vagar por estradas em busca de água ou comida revelam o total desvalor da vida humana. Todos eram brasileiros pobres e humildes, inclusive os militares de baixa patente das forças republicanas.

Antes da guerra não havia fome, prostituição ou trabalho infantil, nem favelas, mas apenas casas humildes, em Canudos. Hoje, a cidade que leva esse nome e que sedia o Parque Estadual de Canudos e também o Memorial Antônio Conselheiro, é repleta de jovens dependentes de drogas, incluindo o álcool, enquanto outros infantes trabalham e muitas outras crianças alugam o corpo aos caminhoneiros que vêm recolher bananas plantadas à margem do açude.

A República, ao invés de levar dignidade aos recantos mais humildes de nossa terra, foi capaz de deixar as marcas da podridão e da desumanidade. Massacrou a dignidade humana, e isso não pode ser esquecido por nenhum brasileiro.

O que ocorreu em Canudos é desconhecido pela grande maioria de brasileiros e não serviu de marco em busca da dignidade humana. Mesmo após esse triste evento, o Estado praticou e ainda continua a praticar barbaridades, seja na Candelária, em Eldorado de Carajás ou em tantos outros locais do nosso Brasil. O que falta e se faz prioridade absoluta é a cultura de Direitos Humanos, a começar pelas próprias instituições republicanas.

Cyro Saadeh é Procurador do Estado de São Paulo.

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